Ditão II
Crônicas do Itapema, por Jorge Souza
– Tudo cabe neste mundão de muitas porteiras, menos o sorriso dela.
– Como assim, Ditão? – perguntei-lhe naquela tarde de nuvens espessas, ameaçando chuva. Eu, sentado numa cadeira à cabeceira da sua cama e ele, deitado exibindo-me o cotoco envolto em gases, restos do que fora a sua perna direita.
As suas palavras estavam, misturadas à desilusão e tristeza. E, com o mesmo gosto, continuou:
– Não tenho nada. A única coisa que me restou foi a lembrança do sorriso dela. O mundo é grande, mas o sorriso dela era maior ainda! Seus dentes bonitos primeiro beliscavam os lábios carnudos da boca da noite, diziam segredos nas suas orelhas e depois engoliam-na de uma só vez. Não procure entender estas falas, hoje o meu coração está embebido de saudade do grande amor que tive, mas que nunca foi meu. O meu fim está perto. Uma coisa interessante é o meu pensamento sobre a morte. Quando eu vivia além das grades azuis, tomando sol num eitão de enxada, calejando a alma, temia a morte. Mas agora, aqui dentro, as coisas são diferentes. Aqui não morremos. Ao transpôr este portão de grades azuis, já entramos mortos. Morrer não é somente calar a batida do coração. Um corpo vivo, porém oco de esperança, também já é um defunto.
Não me pergunte nada. Não me fale nada. Apenas me ouça. Eu preciso falar. Ainda sinto o cheiro de urina, da merda de vaca vindo do curral do Dito Cunha. Eu quero dividir este cheiro com alguém que também conheça. Perdi a conta de quantas vezes, eu e você, fomos juntos com o calderãozinho apanhar o leite direto da teta da vaca. Neste momento, está no meu ouvido o coaxar dos sapos vindo dos barreiros nas noites quentes, o som da rã-pimenta, do sapo-lata. Quero falar dos vaga-lumes. Agora que a iluminação pública chegou, os vaga-lumes ainda piscam?
Lembra do lobisomem que eu vi naquela noite de sexta-feira, de lua cheia? Você, seus irmãos e seu pai, todos com a lamparina no meio da olaria procurando as pegadas?
“Onde Ditão?” – seu pai perguntou. “Aqui, as pegadas estão aqui. Lumia aqui.”
“Ditão, isto aqui tá parecendo pegada de cachorro-do-mato…” o seu pai duvidou.
“É não. É lobisomem! E dos grande!” – afirmei.
– Sabe, Jorge, vou morrer triste e não é pela falta de esperança. Nesta minha vida trago apenas um arrependimento. O meu arrependimento é de nunca ter tirado esta canga do meu pescoço, nunca deixei de ser gado cabisbaixo, guiado por berrante ou estalos de um chicote. Eu sempre soube que a liberdade de um passarinho não está apenas no seu canto mas sim na ação de voar. Palavras aliadas com ações rompem grades, fazem dos sonhos, realidades.
E eu? O que fiz? Fui um homem apenas de palavras… Será que no outro mundo há também cangas e chicotes? Haverá outro mundo?
***
Três dias após esta conversa, ele morreu
No dia seguinte ao seu enterro, fui ao asilo. E lá, no canto, na penumbra do quarto, a mesma cama já estava ocupada. Por sobre ela, o cobertor cinza enrolado, exibia contornos de um novo corpo.
Foi só a partir deste momento, que notei que o Ditão, para nós do Itapema também conhecido como Dito Cumprido, começou a virar saudade…
Por Jorge Souza – Do livro Crônicas do Itapema, O Plantador de Poesias (Editora D Guararema) – jorge.p.souza@hotmail.com
Postado em 16 de setembro de 2016